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SÃO MIGUEL

DA PINTURA E DO SAGRADO - CONTRADANÇA DA TERNURA

1. Carlos Vergara é um pintor. Carlos Vergara também é um viajante. Ele viaja para pintar, buscando no deslumbramento do ver pela primeira vez a força motriz da sua poética visual. Daí a intensidade e a multiplicidade. O deslumbramento requer intensidade para que o sobressalto, típico do susto admirado diante do novo e do Outro, não se faça excessivo ao se transpor em obra. A intensidade é conquistada no trabalho de ateliê, no lento ofício do gesto, da pincelada, da mão-olho-pensamento. O exercício do pintor contemporâneo é uma espécie de superação da técnica, do saber-fazer, da destreza. Supera-se o virtuosismo em busca do poético. Só assim ainda advém algum deslumbramento. A multiplicidade, por sua vez, vem do fato de Vergara transformar cada viagem, cada paisagem, cada topografia, todo detalhe de um mundo carregado de afecções, em uma nova materialidade artística. Seja na fotografia, seja nas monotipias, seja nas telas, o mundo percebido é apropriado, transportado, retrabalhado e reinventado. Sua pintura parece estar sempre mudando, mas só assim ela se torna disponível ao que é próprio de cada situação. Uma questão importante no artista viajante é essa disponibilidade para o outro, o cuidado com as diferenças. Como escreveu Ovídio no século I da Era Cristã, “tudo muda, nada desaparece”. Mudar para revelar e permanecer. A metamorfose é uma forma instável, pois atravessada pelas mutações do tempo e do sentir. O que tinha sido visto no local por onde passou o artista é revisto, como se fosse a primeira vez, na superfície da tela ou nas palpitações das fotografias em 3D. É fundamental não se confundir os motivos de viagem com algum fator ilustrativo da obra. O pretexto não determina o texto, nem o visto, o visível. Na verdade, pela obra se refaz a viagem. Não se trata de reproduzir o que estava lá, mas de se fazer do deslumbramento um acontecimento pictórico. A viagem, no fundo, é uma metáfora para o fazer poético – ir em busca. 

2. Vivemos em um mundo que despreza a admiração. Para Descartes, a admiração era uma das mais nobres paixões da alma. Imagino a tristeza desse grande pensador se soubesse no que se transformou sua busca por certezas indubitáveis. Paradoxalmente, o conhecimento claro e distinto, corolário da certeza, tornou-se cego. Contra isso, e em nome de um pensamento que se dá no mundo e pelo mundo, Merleau-Ponty transformava a dúvida em fé perceptiva. “Reduzir a percepção ao pensamento de perceber, sob o pretexto de que só a imanência é segura, implica assinar um seguro contra a dúvida, cujos prêmios são mais onerosos do que a perda que deve ser indenizada, pois implica renunciar ao mundo efetivo e passar a um tipo de certeza que nunca nos dará o ‘há’ do mundo.” Esta noção de fé perceptiva vem a calhar neste contexto, pois o que se quer mostrar não é da ordem da demonstração, mas da constatação. Há um mundo e formas de vê-lo, cuja apreensão requer sempre criação. O mundo é o que se vê, junto e para além do que se mostra, um co-nascimento entre quem vê e o que é visto. Pintar a partir da experiência na Missão de São Miguel requer aceitar um ponto de partida e dar-lhe um tratamento poético, de modo a impulsionar o visto para além de si através do ver-fazer da pintura. O que interessa é que não se passa impune por determinados lugares e diante de certos acontecimentos. São Miguel certamente é um deles. O que de fato aconteceu ali? Como visões de mundo tão diferentes – dos jesuítas e dos índios – se puseram em comunhão com a experiência cristã do sagrado? Que utopia foi aquela, uma espécie originária de Canudos às margens do rio Uruguai? Até a formulação dessas perguntas é difícil nos dias de hoje. O que resta, indiscutivelmente, é uma ruína de igreja ainda esplendorosa sinalizando para algo misterioso com força de encantamento perante o artista admirado. Assim sendo, não cabe temer a experiência e tomá-la como motor ou inspiração para uma série de trabalhos. As pinturas não servem para ilustrar nada. Não se representa São Miguel através delas. O que sobra daquela experiência do sagrado, a utopia de São Miguel, só pode ser visto hoje como uma espécie de suplemento (invisível) dessas pinturas. Ou seja, o que existe é a pintura de Vergara, com sua materialidade densa, sua coloração agitada, seus espaços apertados, sua textura pulsante. Aí de dentro, vislumbra-se, como o que não tem nome, o encontro selvagem e amoroso de índios sul-americanos e missionários jesuítas. Isso não se mostra nas pinturas, eventualmente se revela no susto de um olhar disponível. 

3. Tornamo-nos mais eficazes na nossa capacidade produtiva/cognitiva, mas muito menos disponíveis à entrega/potência amorosa. O Sagrado Coração de que fala Vergara seria uma força que nos põe em direção ao outro sem subtração do si mesmo. A pintura só pode falar do que não é ela falando de si, das qualidades pictóricas. Mas será que todo olhar está sempre disponível para perceber o que não se mostra, o para além da pintura? A disponibilidade tem a ver com a capacidade de admiração. Uma pergunta meio abrupta: será que a “desadmiração”, típica de nossa atual pedagogia da suspeita, aponta para a “despolitização” crescente em que vivemos? Uma tese romântica: a política liberal é pautada pela desconfiança, a política libertária, pela capacidade de admirar. Explico-me: sem ver o outro não se concebe um mundo em comum. A pintura é extemporânea talvez por ter essa tonalidade afetiva e esse tempo da admiração. Ela é política por resistir à velocidade e nos impor um presente absoluto, um tempo estendido. Há que se deixar o tempo recuar para que possamos aderir à fugacidade do aparecer. A pintura de Vergara é intensa e múltipla. Como poderia a arte revelar um acontecimento singular? Como partir desse encontro admirado com as ruínas de um mundo perdido e recriar uma tonalidade afetiva onde se desarme a desconfiança fechada à diferença? Pode a arte ir ao encontro do que foi e propiciar o novo? Como “falar de” sem ser ilustrativo? 

4. As cores de Vergara saem da natureza, da terra, dos pigmentos minerais, mas se dispõem a uma sensualidade que não teme o incêndio da fantasia pictórica. Sem o recurso de uma visualidade extrovertida, o relato se tornaria de mão única, subtraindo a imaginação do ato de ver, confundindo-se criação com reprodução. Reconduzir-nos para esse momento absolutamente original de encontro e conversão requer a multiplicação dos afetos e potências visuais – daí Vergara lançar mão de vários meios simultaneamente, combinando a pintura, a fotografia, o filme, as monotipias, entrelaçando formas de sentir variadas. Em um pequeno texto do ensaísta português Eduardo Lourenço sobre o maior de todos os aventureiros-escritores que chegaram ao Oriente no século XVI, Fernão Mendes Pinto, ele observa o deslumbramento diante do Outro, do jamais visto e percebido, que assoma nas páginas de Peregrinação, um relato que é ao mesmo tempo história e ficção, onde a fantasia e o real parecem uma única e mesma coisa. A certa altura, Lourenço escreve: “o único fio que liga o texto ao real é o entrelaçado ou a contradança dos sentimentos idealizados que anunciam a geometria do coração do Mapa da Ternura”. Era isso que eu gostaria de observar nessas pinturas, fotografias, monotipias de Vergara na Missão de São Miguel: uma contradança de sentimentos, uma geometria do coração, um mapa da ternura. Voltando ao que falava anteriormente sobre a operação poética de Vergara, há nela uma necessidade de buscar os meios adequados para revelar algo não sabido, mas sentido. Mudar sempre para revelar o desconhecido. Deixar a multiplicidade de vozes e afetos encontrar uma intensidade poética própria para cada situação. A contradança dos sentimentos fala da multiplicidade de meios. A geometria do coração é o que transforma o sentir de todas as maneiras, típica do encontro com o Outro, numa visualidade intensa e destemida. O mapa da ternura é a brecha disponível por onde uma experiência do sagrado pode ganhar um vestígio de atualidade. Vestígio este que assoma nos fios esticados pelo artista e que preenchem e habitam o vazio nas ruínas da Igreja de São Miguel. Na monotipia que carrega o coração de pedra no lenço branco de uma inocência perdida. Nas cores, nas muitas cores que vemos nestas telas, em sua opacidade mineral que nos abre para uma profundidade, quase delirante, que absorve o silêncio de uma utopia de conversão. Conversão por afetos e não por palavras, daí a relevância da pintura e da ternura que resplandece na superfície das telas, nas passagens vertiginosas de luz e planos.

Luiz Camillo Osório

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