ESTRANHA PROXIMIDADE
Num país onde boa parte da arte contemporânea se relaciona de modo direto ou indireto, interagindo ou reagindo, com o capítulo construtivista que marcou e ainda marca a sua arte, a pintura de Carlos Vergara vem desenvolvendo desde 1989 produz certa estranheza. Essa diferenciação se realiza pela forma como ele incorpora questões locais. Paradoxalmente, é estranha pelo fato de ser uma pintura brasileira sem se ligar a estereótipos da província. Quando recusamos os ícones que uma certa figuração explorou criando imagens exóticas de si mesma, passamos a admitir o esforço reflexivo dos trabalhos construtivistas e pós-construtivistas que se orientam por uma ordem conceitual onde qualquer elemento local se encontra mediado por tantas instâncias que passa desapercebido. Mas de que modo essa pintura pode se dizer portadora de uma estranha proximidade? Lembro-me de um pequeno texto de Walter Benjamim, entre os muitos textos curtos que narram seus sonhos, onde a ansiedade se assemelha à sensação que certos brasileiros experimentam diante dessas telas. No sonho ele se encontrava junto a um imenso muro de pedra, tão próximo que não permitia que ele visse o restante da construção; sua angústia crescia porque ele sabia que aquela pedra do muro era a Notre Dame. Estava junto à catedral e não podia vê-la porque não era possível recuar para ver o todo. Um verdadeiro pesadelo. Se não me falha a memória, Maurice de Candillac traduziu o título dessa pequena narrativa como Proche, trop proche.
Esta pintura de Vergara carrega esta proximidade excessiva. De início, seu procedimento sublinha seu caráter imediato: a monotipia das paredes de uma pequena fábrica de pigmentos de óxido de ferro, na cidade de Rio Acima, a meio caminho entre Belo Horizonte e Ouro Preto, se escolhermos pequenas estradas do interior, no estado de Minas Gerais. A presença desses tons pertence à paisagem dessa imensa região onde o ferro aflora no solo e nas encostas das montanhas. A população ali convive com essas cores da mesma forma que aqueles que vivem na Amazônia convivem com diversos tons de verde. Por razões históricas esses pigmentos se encontram, também, presentes na origem da pintura no Brasil, se excluímos as manifestações artísticas dos índios, de interesse estético-antropólogico. Encontramos estes pigmentos já na pintura do início do século XIX , na obra do Mestre Atayde nas igrejas dessa região. Há, portanto,essa presença cromática imediata da paisagem e da própria história da pintura.
A cor e o caráter imediato do procedimento não bastam para compreender essas pinturas, há a escala e uma inteligente inversão. Visualmente os tons terra, ferruginoso, ocre, vermelhão do óxido de ferro não são suficientes para transportar uma significativa parte do Brasil para essas telas. A generosidade de suas dimensões e o caráter propositalmente artificial, postiço, das estruturas em elipse que participam de sua sustentação, como vértebras expostas, também têm algo familiar e que temos dificuldade de aceitar como constituindo a nós mesmos: essa grandeza frágil. Falamos da paisagem mas as telas nos sugerem, evidentemente, um interior. Duplo movimento carregado de sentido: trazer para o lugar da arte como cena interior os valores cromáticos e a extensão do exterior. E evocar que valores objetivos ainda residem, incertos, como uma nebulosa subjetividade na consciência cultural do país.
Encontramos no passado e no presente estes valores dispersos em diversas obras de arte no Brasil, mas me parece que raramente reunidos num só trabalho. Há um investimento romântico nessa pintura de Vergara que parece acreditar que ali no fragmento, no pedaço de parede, pode estar o todo e que esse encontro não pode ser perturbado por uma racionalidade inibidora, mas capturado no instante mesmo da impressão das telas. Atual, o sublime aqui não pressupõe nenhuma transcendência, ao contrário, dirige na penumbra dessas telas o olhar para esse território onde nos encontramos de tal forma mergulhados que não o vemos.
Paulo Sergio Duarte, maio de 1995